sexta-feira, 2 de maio de 2008

CRÔNICA - RICÃO, O CARNICEIRO

Ricão era ruim por opção paterna. Desde sua concepção, Seo Austero, já planejava a formação do botinudo. O mingau do aspirante a carniceiro era à base de farinha e fubá, tudo para garantir a sustância que o filho necessitava. De mesma forma, o pai recorria ao espinafre – por causa do desenho – e ao abacate – sem açúcar, que, segundo Seo Austero, era coisa de frutinha.

Com o tempo, Ricão aprendeu a história de todos os ídolos de seu pai – e cujos pôsteres adornavam seu quarto. Sabia de cor a data de nascimento, nome completo e a quantidade de cartões – tanto amarelos, quanto vermelhos – “conquistados” por Chicão, Felipão, Simeone, Mancuso e muitos outros. A mais nova divindade a entrar para sua lista fora o italiano Marco Materazzi: “Esse sim é craque, né pai?”

Dona Mara, a mãe, desejava outro rumo para o filho. Recorda o dia em que registrou o grossinho no cartório. Alexandre Henrique da Silva Santos, que bonito, pensava. Já tinha o futuro de seu Xandinho todo traçado. Ele seria professor de matemática, daqueles que tinha livro didático publicado e tudo mais.

Um ano e meio de vida, porém, foi o suficiente para que Dona Mara se conformasse. A fértil imaginação aceitou os fatos depois do primeiro biquinho – seguido de largo sorriso – na canela de Seo Austero. Dona Mara foi obrigada a descartar o Xandinho e aceitar o Ricão.

Seo Austero lembra com entusiasmo do pontapé. Chorou mais do que no dia em que Ricão o chamou de pai pela primeira vez. O golpe garantiu o potencial do garoto para becão de fazenda.

No dia seguinte, Seo Autero decidiu reunir todas as suas economias para comprar a primeira chuteira – aquela que tinha os maiores cravos da loja – de seu filho.

Daí em diante, tudo ocorreu em uma velocidade impressionante. Quase que num piscar de olhos, o zagueiro-zagueiro já treinava no dente-de-leite do Corinthians. Tinha sido escolhido na primeira peneira, para a felicidade do pai.

O treinador, o ex-jogador Gralak, jurou que aquela ameaça ambulante de joelhos tinha futuro no esporte bretão (também tinha habilidade suficientes para a luta greco-romana, mas isso não vem ao caso).

Seo Austero não se continha de alegria. Apresentava o filho a todos os amigos. “Quero que vocês conheçam o maior camisa quatro da história do futebol mundial”, exaltava. Mentira. Obviamente, o pequeno lutador não era nem o melhor de seu bairro, quanto mais do planeta.

Na cabeça de Seo Austero, no entanto, o título fazia perfeito sentido. Ficava enfurecido quando alguém mencionava certos zagueiros do Paraguai, como os considerava.

“Luís Pereira é o carvalho! Mauro Ramos, Baresi, Mauro Galvão... todos tem mais é que se f#*$¨!! Um bando de fracote!”, argumenta.

O primeiro jogo de Ricão foi numa terça-feira a tarde. Seo Austero alegou algum tipo de virose para faltar ao trabalho. Queria assistir a estréia do filho. E emoção quando deu sua primeira bica. “A primeira de muitas”, pensou.

No entanto, o entusiasmo deu espaço a um breve período de tristeza. Ricão se lesionou três semanas mais tarde, após um carrinho desferido por ele em um atacante adversário.

O médico explicou que o batedor havia caído de mau jeito. Informou o temor (mesclado a alívio, ressalta-se) de que o quebrador de ossos ficasse seis semanas de molho.

A desilusão tomou conta de Seo Austero. Rezou para todos os santos que conhecia (e descobriu que não existia nenhum que zelasse pelos caneleiros) para que o filho se recuperasse e jamais passasse por algo semelhante. “Ele não merece”, afiançava.

Ricão voltou para os gramados antes do tempo estimado pelo doutor e nunca mais voltou a se lesionar. “O negócio dele é tirar os outros da partida”, se divertia Seo Austero.

Poucos anos mais tarde, Ricão ligou da concentração para o pai. Antecipou que seria titular pela primeira vez no profissional. Prometeu ainda receber um cartão amarelo para seu velho.

Logo aos cinco minutos, o açougueiro cumpriu o que havia dito. Desferiu um carrinho lateral na camisa dez do Santos. O juiz apresentou o objeto quadriculado quase que instantaneamente.

Ricão esboçou largo sorriso. De casa, seu pai retribui e comemorou com 20 rojões, acesos em seqüência.

Na véspera do jogo seguinte, Seo Autero ouviu do filho que aquele chileno seria seu próximo alvo. Em um misto de alegria e surpresa perguntou se o ato não poderia acarretar em expulsão.

Ouviu, após breve silêncio, que, caso isso ocorresse, seria ainda melhor. Olhou para o alto e concluiu que a criação de seu moleque fora na medida certa.

Seo Austero não conseguia mais conter o orgulho que sentia por seu filho. Gravava todas as faltas de Ricão. Vibrava ao ouvir os urros de dor dos adversários. Adorava quando os comentaristas chamavam o zagueiro de carniceiro.

A torcida também nutria sentimento semelhante. Entoava com freqüência a música do agressor: “Bate, Ricão!!!” “Bate, Ricão!!!” (e caso se perguntem, Ricão nunca foi cobrador de escanteios, faltas e pênaltis).

Ao final do ano, ele disputaria sua primeira final. Contava os dias para aquele Corinthians X Palmeiras.

Seo Austero havia se demitido do trabalho. Não queria perder um minuto com qualquer assunto que não fosse o filho.

Na manhã da partida acordou cedo – antes mesmo do sol – e ainda trajando seu pijama azulado, correu para a banca mais próxima e comprou todos os variados jornais que falavam sobre a decisão. Mais tarde, se acomodou no sofá e ouviu a todos os programas esportivos que conseguiu no rádio.

Pensou que fosse sofrer um ataque cardíaco quando o Corinthians entrou em campo. Era apenas o excesso de alegria que sentia no momento. “É o auge da minha vida”, avaliou.

O jogo, no entanto, não foi o que Seo Autero esperava. O bate-e-rebate no meio-de-campo engessou a partida e concentrou o jogo naquele setor do campo. Ricão mal havia tocado na bola, quanto mais na canela de algum adversário.


O zero a zero desconcertou os torcedores do timão. Seo Autero estava impaciente com a falta de falta (se é que se pode dizer assim). Ligou para os amigos durante o jogo. Reclamou do juiz, bandeira, não perdoou técnicos ou jogadores. Enraivecia-se por não ter avistado ainda o maqueiro.

Tulião, companheiro há 37 anos, conseguiu o acalmar: “Paciência Tero. Daqui a pouco alguém sai com uma luxação, talvez quebre uma perna. Quem sabe até role uma fratura exposta, daquelas bem vistosas, já imaginou?”.

Aquilo bastou para que Seo Austero se concentrasse novamente no jogo. Se tudo deu certo até agora, não iria mais dar errado, concluiu e iniciou uma espécie de contagem regressiva para uma falta verdadeira, digna de entrar para a história do esporte.

Em campo, os ânimos se acirravam. Os torcedores mantinham o tom de guerra nas arquibancadas. A partida, porém, não contribuía.

...

No último minuto, o Corinthians conseguiu seu primeiro e único escanteio. Seo Austero entrou em êxtase. “Escanteio, pomba!! Taí a oportunidade que precisávamos. Tumulto! Soco na cara! Cotovelada na costela!! Chute nos fundilhos!! Melhor, tudo isso junto!!!”.

Os jogadores do timão enxergaram oportunidade diferente: a de marcar o gol da vitória de sua equipe. Todos os atletas foram para a área adversária, exceto Sarnei, o goleiro vara-pau, e Ricão.

A torcida, em uníssono, faz coro para que o defensor-pereba se juntasse aos companheiros de clube na outra extremidade do gramado. “Vai, Ricão!” “Sobe, pomba!!”, gritavam.

Sarnei se juntou a massa. “Vai lá moleque. Chuta essa bola como se fosse uma canela virgem, daquelas que jamais sentiram a dor de uma pancada bem dada”.

A comparação incentivou Ricão, que, mesmo baqueado, decidiu seguir o conselho do camisa 41.

Meio inebriado com tudo aquilo, o moleque desprovido de qualquer habilidade mais parecia um desbravador caminhando passo ante passo naquele local que nunca antes conhecera: o campo de ataque.

O jovem destruidor correu no campo a procura de impulso suficiente que o levasse direito para aquela bola, tão frágil, mas que, mesmo assim, havia o hipnotizado.

No sofá, Seo Austero já havia perdido qualquer resquício de humanidade (embora, convenhamos, ele não encontrou dificuldade para isso). Gritava com todas as forças à medida que acompanhava seu filho correndo.

“Vai carvalho!!! Acerta uma voadora nesses filhos da p$#*” “ Dá uma cabeçada em alguém filhão. Qualquer um, não me importa se for ou não de seu time”.

Seo Austero fechou os olhos. Queria saborear aquele momento tão adocicado. Só voltou a os abrir segundos depois, quando a torcida entrou em polvorosa.

Poste, o outro defensor do timão, aproveitou a paralisia instantânea dos palmeirenses – que tremiam com a presença do violentíssimo Ricão – para resvalar na bola. Ela foi direto para Ricão, mas especificamente para a orelha do número quatro, que só voltou a avista-la quando olhou para o fundo das redes.

A torcida gritava de alegria. Ricão, totalmente fora de seu habitat natural, só conseguiu pensar em dedicar o gol a seu principal inspirador, o pai.

Inconformado, Seo Austero não acreditava no que via. Ninguém saiu com uma ou duas costelas quebradas. Nem houve nenhum corte profundo. Nem mesmo uma unha quebrada. Só o maldito gol. De seu filho, ainda por cima. Sangue de seu sangue.

Decidiu respirar fundo. Assistiu ao lance novamente. Presenciou aquela homenagem e desligou o televisor.

Nunca mais falou com seu filho.

Aliás, que filho?

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